Na última década, o Brasil testemunhou uma escalada sem igual de escândalos de corrupção. Vampiros, sanguessugas, mensaleiros – entre outras máfias menos afamadas – surrupiaram dos cofres públicos de 41 bilhões a 69 bilhões de reais por ano, segundo estimativa da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Sobre esses valores paira a percepção de que o sistema político brasileiro serve mesmo é ao enriquecimento pessoal de autoridades e ao financiamento de máquinas partidárias. Apesar da gravidade do quadro, a sociedade atravessou o período em estado de letargia.
Quanto maiores as cifras desviadas, mais tímidas eram as vozes a se levantar contra os malfeitos. Tem sido assim. Uma pasmaceira entrecortada por alguns espasmos de indignação. Na semana passada, de maneira totalmente espontânea, valendo-se das redes sociais como plataforma de organização, milhares de brasileiros reagiram nas ruas. Em diversas capitais, eles, a maioria jovens, fizeram demonstrações paralelas aos desfiles oficiais do Dia da Pátria. Algumas características dessa ira santa dão esperança de que, desta vez, não se trata apenas de um espasmo. Os manifestantes mostraram total autonomia em relação a partidos políticos e, sem se questionar sobre suas predileções políticas, empunharam a mesma bandeira: “Chega de corrupção!”. Nas redes sociais, no dia seguinte, eles avaliaram como razoável a primeira incursão organizada às ruas e já marcaram uma nova manifestação para o próximo dia 12 de outubro.
Brasília, cidade acostumada a assistir pela janela a manifestações artificiais patrocinadas por sindicatos ou por partidos políticos, sediou a demonstração de força mais vistosa: cerca de 12000 pessoas empunharam bandeiras contra a corrupção, protesto que reuniu estudantes, empresários, profissionais liberais, famílias e até funcionários públicos – categoria que costuma testemunhar passivamente os desmandos que se passam dentro dos gabinetes de seus chefes e que quase sempre se cala por conivência ou receio de perseguição. O fato é que, pela primeira vez em muitos anos, a capacidade de indignação parece ter saído de um coma induzido pelos recorrentes exemplos de impunidade e de maus hábitos dos políticos. Nos últimos tempos, a corrupção foi vulgarizada a ponto de parecer uma coisa corriqueira, quase natural, merecedora de um conveniente consenso de que ela também é inevitável e inimputável. As manifestações mostram que tem muita gente que não pensa assim.
Na década de 90, quando brilhava na oposição, o PT comandava grandes mobilizações ao lado de entidades civis e movimentos sociais. O partido protagonizou, por exemplo, ações que minaram politicamente o então presidente Fernando Collor de Mello, apeado do poder ao cabo de um processo de impeachment. Ao subir a rampa do Palácio do Planalto, o PT enrolou a bandeira da ética e, por meio de generosas verbas públicas, empalhou junto com ela os setores outrora aguerridos. Caso da União Nacional dos Estudantes (UNE) e das centrais sindicais, que, obviamente, não participaram das marchas anticorrupção da semana passada. No poder, Lula se mostrou benevolente e complacente com companheiros e auxiliares pilhados em irregularidades. Tornou-se o anestesista-geral da nação.
Agora, sem a faixa presidencial, empenha-se numa cruzada para tentar convencer os incautos de que o mensalão não passaria de uma conspiração da oposição, com o apoio de setores da mídia, para satanizar seu próprio governo e companheiros petistas – principalmente aqueles que respondem por formação de quadrilha e corrupção no processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), como o ex-ministro José Dirceu. Lula continua com sua pregação, o PT continua no poder, os movimentos sociais continuam mudos e se empanturrando de dinheiro e denúncias de corrupção continuam pipocando com antes. Tudo, portanto, aparentemente igual, exceto pelas manifestações populares de indignação que começam a se espalhar por todo o país.
Para o cientista político Albeno Carlos Almeida, diretor do Instituto Análise, a troca de comando na Presidência da República foi um dos dínamos das manifestações da semana passada. Desde que assumiu o mandato, Dilma Rousseff demitiu três ministros acusados de irregularidades que vão do enriquecimento ilícito à corrupção. Caíram o petista Antonio Palocci (Casa Civil), o “republicano” Alfredo Nascimento (Transportes) e o peemedebista Wagner Rossi (Agricultura). “O fato de a presidente se comportar assim ajuda muito porque as pessoas começam a notar que alguém importante está sensível à causa do fim da corrupção. As pessoas incorporam a sensação de que a mobilização pode provocar algum impacto em Brasília”, diz Almeida. No pronunciamento oficial de Sete de Setembro, Dilma fez questão de reforçar o compromisso com a moralidade. “Um país que com o malfeito não se acumplicia jamais. E que tem na defesa da moralidade, no combate à corrupção, uma ação permanente e inquebrantável”, prometeu.
O discurso presidencial está em linha com os humores da população detectados em pesquisas. Auxiliares de Dilma dizem que, segundo sondagens recentes, o combate à corrupção é um tema em ascensão na agenda do brasileiro – apesar de ainda figurar atrás de saúde, educação segurança pública. Mais importante: o tema começou a sensibilizar a chamada nova classe média, o contingente que deixou a pobreza e a miséria nos últimos anos e agora é perseguido como ouro pelos partidos políticos. “Fica claro que, neste novo momento, a população não dará apoio aos lenientes e àqueles que querem apenas pegar carona no discurso de combate à corrupção”, diz um integrante do núcleo duro do governo. Exemplo disso ocorreu na marcha de Brasília. Políticos e partidos que tentaram se integrar ao movimento foram hostilizados pelos manifestantes. As pesquisas à disposição do Planalto também dão fôlego ao combate à corrupção. Primeiro, por mostrar apoio popular à faxina realizada. Segundo, ao apontar Dilma como a principal depositária da esperança de diferentes segmentos de ver um país livre da roubalheira e da impunidade. “Para a população, não há a percepção de que houve recuo no combate à corrupção. Pelo contrário, avalia-se que a presidente está levando a situação com jeito”, conta um auxiliar.
Além do bom exemplo que vem de cima, outros fatores influenciaram as marchas da semana passada. Para o cientista político Paulo Kramer, professor da Universidade de Brasí1ia (UnB), “a bem-vinda reação” decorre do descompasso crescente entre as áreas econômica e social, de um lado, e as instituições políticas, do outro. O Brasil hoje vive com inflação sob controle, respeita contratos firmados, tem peso crescente no comércio internacional e resgata milhões de pessoas da pobreza para a classe média. Nesse campo, faria jus, portanto, ao status de emergente. Já na seara política ainda convive com práticas dignas de nações africanas subdesenvolvidas. Basta olhar para o Congresso, onde ainda reina, por exemplo, o senador José Sarney, e onde pode transitar com tranquilidade o deputado Paulo Maluf, que consta na lista de criminosos procurados pela lnterpol. Se ele sair do Brasil, vai preso. Aqui, elabora leis. “A corda esticou demais. O Brasil já não suporta mais esse sistema político em que a corrupção é endêmica”, diz Kramer.
Aliás, a ideia da marcha ganhou força exatamente por mais uma demonstração explícita de escárnio dos políticos quando o tema é corrupção.
Uma semana antes do ato em Brasília, 5000 pessoas haviam se mostrado dispostas a passar o feriado protestando. A absolvição da deputada Jaqueline Roriz (PMN) pelo plenário da Câmara dos Deputados, há duas semanas, estimulou uma onda de adesões. Jaqueline é filha do ex-governador Joaquim Roriz, um populista que, à moda dos velhos coronéis, fez da política um negócio de família. Ela foi processada depois de aparecer em um vídeo embolsando propina. Apesar disso, 265 parlamentares decidiram que não havia motivos para puni-Ia, uma vez que a propina fora recebida antes de ela tomar posse. É um exemplo visível da capacidade de resistência da corrupção e dos corruptos. Há outros menos visíveis, porém muito mais poderosos. Diante da disposição de Dilma Rousseff de limpar áreas historicamente contaminadas, os próprios partidos aliados estrilaram e ameaçaram retaliar o governo em votações no Congresso.
PP e PMDB pegaram em lanças a fim de impedir as demissões dos titulares das Cidades e do Turismo, cujas pastas estão há semanas no centro do noticiário devido a uma série de denúncias de irregularidades. Ciente do clima de ebulição entre os parlamentares, a presidente Dilma chegou a anunciar que a faxina ética não era meta do seu governo. Sua prioridade seria o combate à pobreza. A classe política, por incrível que pareça, gostou do que ouviu. Os jovens, não. “Se ficarmos calados, seremos coniventes”, diz a brasiliense Lucianna Kalil, vendedora autônoma, de 30 anos, sem filiação partidária, que, com a ajuda da irmã e de um amigo, lançou, pela internet, a ideia da manifestação. A segunda onda de protestos, marcada para o dia 12 de outubro, vai ser decisiva para reafirmar a sensação de que o grito dos jovens no dia 7 de Setembro não foi apenas um espasmo. Torçamos!
Fonte: Revista Veja